Sorvetes: como não cair no conto do “artesanal”

Você chamaria de trapaça se alguém te vendesse um bolo “caseiro” que, na verdade, foi feito com mistura de ingredientes vendida numa caixinha no supermercado, a qual a pessoa só misturou leite e colocou no forno? Eu, sim. Uma tremenda trapaça, aliás. E é isso que acontece boa parte das vezes quando uma sorveteria alardeia produzir “sorvete artesanal”: cidadão compra base pré-pronta (também chamada de pré-mistura e neutro), adiciona umas frutas (quando não é apenas corante e aromatizante), leite ou água, bate e coloca na vitrine.
Super artesanal – só que não.

Artesanal é um termo que foi profundamente banalizado na gastronomia: tudo e qualquer coisa é designada dessa forma. Artesanal, porém, tem significado bem claro, pelo menos no dicionário: processo de trabalho do artesão, que escapa a produção em série; não-industrializado.

Você conhece o sorvete que está tomando? Sabe com o que foi produzido?

Não considero artesanal um sorvete que leve “açúcar, dextrose, óleos vegetais de coco e palmíste hidrogenados, maltodextrina de milho, xarope de glucose, caseinato de sódio, emulsificantes ésteres de mono e diglicerídeos de ácidos graxos com ácido acético, estabilizantes carboximetilcelulose sódica e goma guar, corantes naturais cúrcuma e urucum e aromatizantes” – também chamado de Melhorador de Cremosidade.

Também não considero artesanal um sorvete com “açúcar, cacau em pó, óleos vegetais de coco e palmíste hidrogenados, xarope de glucose, caseinato de sódio, extrato de malte, maltodextrina, emulsificantes ésteres de mono e diglicerídeos de ácidos graxos com ácido acético, estabilizantes carboximetilcelulose sódica e goma guar, aromatizantes, corante caramelo IV e corantes artificiais tartrazina, bordeaux S, indigotina e amarelo crepúsculo FCF”, mistura denominada pela indústria Preparado para Sorvete Sabor Chocolate. Como no Brasil, ao contrário do que acontece na Itália, não há a obrigatoriedade das sorveterias disponibilizarem a lista de ingredientes de todos os sabores vendidos, o cliente jamais saberá o que há no alimento – sim, sorvete é alimento! – que está consumindo…

Quer dizer então que aquela sorveteria hipster que diz usar “frutas orgânicas sazonais de pequenos produtores” e a outra, super cool, que alega comprar o leite de vacas felizes alimentadas a pasto, vendem esse lixo? Não obrigatoriamente. Há a possibilidade de produzirem o sorvete do zero, apenas com ingredientes naturais – como leite não reconstituído, frutas frescas, cacau, gemas não pasteurizadas, farinha de alfarroba, etc -, mas a maior probabilidade é que usem alguma base pronta/pasta base/ neutro: esse tipo de produto garante que todas as lojas da marca tenham sorvetes com o mesmo sabor, consistência e cor, facilita e barateia o processo (armazenamento prolongado e pouca ou nenhuma perda de produto fresco) e permite a contratação de mão-de-obra de baixa qualificação.

Toda pasta base é uma mistura de espessantes, emulsificantes e estabilizantes. Nem toda, porém, é de baixa qualidade: há marcas que prezam pela incorporação de ingredientes naturais e evitam aditivos artificiais, como corantes e aromatizantes. Mas, de novo, o cliente não tem como saber, já que o acesso a essas informações não é mandatório por lei… Nesse universo, tem de tudo: quem compra a pior e mais artificial pasta, cria marca bonitona e e vende como se fosse um super sorvete; quem opta pela pior pasta mas coloca umas frutinhas; quem adquire as melhores possíveis e personaliza com bons itens (e isso acontece no MUNDO TODO, não apenas no Brasil. Sim, inclusive na Itália).

Tabela de tipos de bases prontas para produção de sorvete

Tem jeito de identificar um artesanal de verdade de um falso artesanal?
Antes de tudo, um adendo: existem bons artesanais e péssimos artesanais. Não é porque um alimento foi feito do zero que ele, automaticamente, será delicioso  – isso depende do talento de quem o faz e dos insumos utilizados. Assim como existem bons sorvetes industriais e péssimos sorvetes industriais: não é porque há maquinários, tecnologia e escala de produção que o resultado, automaticamente, será péssimo para a saúde e cheio de tranqueiras (LEIA RÓTULOS!).

Ah, quantas cores lindas! Ah, todos esses sabores! Mas a probabilidade de ser corante e aroma artificial é imensa…

Voltando: tem, sim, como identificar se um sorvete é artesanal. Mas não é fácil.

  • O sorvete deve ter a cor do ingrediente principal.
    Pistache verde-atômico, morango fosforescente, chocolate preto-noite-sem-lua: nada disso é real. Quando a cor do sorvete é gritante demais, é corante. Quando é apagada demais, ou tem pouco ingrediente que dá nome a ele ou o ingrediente em questão não está no seu melhor momento (sorvete de morango amarrozando = morango oxidado
  • Na natureza, cada ingrediente tem uma textura específica. Logo, cada sorvete deveria ter uma textura específica.
    Viu aquela vitrine com montanhas de sorvetes, todos com a mesma consistência? DESCONFIE. Um sorvete de manga a a base de água (sorbet) jamais terá a mesma textura que um sorvete de pistache a base de leite, que jamais terá a mesma que um de baunilha. Se todos estão com a mesma, NA MESMA TEMPERATURA, a probabilidade de levar aquela mistura de espessantes, emulsificantes e estabilizantes – a pasta base – é altíssima.

Não importa se você prefere sorvete ao estilo francês (geralmente a base de leite, maturado para incorporação dos sabores, alto teor de gordura), ao estilo italiano (geralmente a base de leite, médio teor de gordura, batido diariamente), ao estilo americano (gordo, a base de creme inglês) ou granita ou sorbet. O que importa é saber o que está comendo para poder OPTAR por comer ou não.

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Quer saber mais sobre sorvete? Acesse o blog GELATOLOGIA, criado por uma das maiores autoridades sobre o assunto no Brasil, a chef gelatière Marcia Garbin.

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