Roberta Sudbrack: “O que eu quero é ser cozinheira de forno e fogão”

Num universo tão apegado a listas, prêmios e aparências, como é o da alta gastronomia, soa vexaminoso um chef  ‘estrelado’ fechar um dos restaurantes mais aclamados do país para vender sanduíches. ‘Loucura’ e ‘falência’ foram as palavras mais usadas nos bastidores para determinar a motivação da chef Roberta Sudbrack em cerrar, de vez, as portas do RS, no Rio de Janeiro.

Mas loucura e falência não me parecem ter sido as razões que levaram Roberta a finalizar a história de doze anos do RS. Durante um agradável almoço (num dos meus lugares favoritos, o Quem Quer Pão, uma jóia escondida na Barra Funda) acompanhado por quase duas horas de conversa, penso ter compreendido as palavras certas para definir a decisão: coerência e cansaço.

“Os chefs transformaram a alta gastronomia em algo cansativo, e eu me incluo nisso. Evoluímos enormemente na cozinha mas esquecemos de trazer a brasilidade para o serviço. O ritual ficou muito chato. Quando você chega na mesa, as pessoas estão tensas ou no celular, fotografando: não se vê mais gente sorrindo no salão. Uma senhora, certa vez, no RS, me disse que estava nervosa porque não sabia se estava vestida de acordo com a ocasião”, fala Roberta. “Comecei a me questionar se esse formato ainda fazia sentido pra mim. Se toda minha pesquisa, e o que gosto de fazer, está baseada na cozinha e nos ingredientes do cotidiano, como eu continuaria com um restaurante que não é de cotidiano?”

Coerência.

“Com todo respeito ao Michelin, abrir mão dessa estrela (o RS possuía uma estrela na versão brasileira do Guia) foi o que menos doeu. O que mais doeu foi tirar minha cozinha do lugar. Lá, podia cozinhar de olhos fechados. Fui de um palácio para outro (referindo-se aos anos em que trabalhou como chef do presidente da República na gestão FHC) e se não saísse daquela casa, não conseguiria abandonar o formato. Não fechei só um restaurante, fechei um lugar que tem importância pra mim e também para a gastronomia brasileira. Fiz isso da maneira que consegui lidar: não aguentaria dar um último jantar”.

O cansaço com o mundo da alta gastronomia (perguntada por mim como definiria alta gastronomia, Roberta foi taxativa: ‘pensamento, produto, técnica, execução e emoção’) acelerou o processo que já vinha acontecendo internamente na cozinheira, da necessidade de aproximação do seu modelo de negócio com seus anseios pessoais. Lembro que, há três anos, recebi um email dela pedindo dicas de lugares bacanas para comer em Paris, cidade na qual havia estado por três vezes naqueles últimos meses. Mandei um roteiro recheado de restaurantes e bares, mas nada daquilo a interessava: a chef buscava por comidas de rua de excelência, numa pesquisa que resultou no SudDog e, meses depois, no Garagem da Roberta, no Leblon. Era o embrião da sua mudança.

Segundo ela, alguns fatos foram essenciais na evolução do basta: “O lobby, as panelinhas – das quais eu não participava mas via acontecer -, tudo ficou insuportável. Tentei de todas as formas não fazer parte. Não conhecia e nem conheço foodies – aliás, até hoje não sei o que, de fato, é um foodie – e eles nunca gostaram muito de mim, o que indica que o que eu estava fazendo não interessava a eles e, sim, fazia sentido para mim, como tem que ser. Não aguentava mais ir a cerimônia de prêmios. A moça que trabalha comigo em casa dizia: ‘Não vá, dona Roberta, a senhora volta doente’. E voltava, porque era de uma energia complicada demais pra mim”.

Acontecimentos corriqueiros podem causar grande impacto na vida, desde que tenhamos olhar atento a eles. E foi um evento aparentemente desimportante o estopim da reviravolta em sua carreira. “Na manhã seguinte a termos ganhado algum prêmio – acho que foi o Michelin -, cheguei cedo ao RS. Encontrei o seu José, o faxineiro, limpando o vidro da cozinha com jornal, a única coisa que era eficiente pra tirar a sujeira. Quando olhei na direção dele, vi minha cara sendo esfregada no vidro. Ali, naquele instante, ficou mais clara do que nunca a expressão ‘o jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã’. Prêmio não muda nada, não enche salão. Vivia repetindo pra minha equipe: ‘Ninguém aqui vai dormir com medo de perder estrela ou na ansiedade de ganhar outra’. Meu grande prêmio é abrir cardápios pelo Brasil e encontrar quiabo, maxixe, chuchu”.

É inegável que a recente popularização de programas de culinária na tv elevou cozinheiros ao patamar de celebridades – e escolas de gastronomia, a escadarias para a fama. Nunca tanta gente se interessou pelo assunto. Mas até que ponto essa festança em torno da profissão fez/faz bem a ela? O amadurecimento do mercado andou na mesma passada larga da exposição televisiva?  

“Outra coisa que vinha me incomodando: com tudo o que conquistamos como nova linguagem da cozinha brasileira, a gente se uniu pouco demais. É muita competição, prêmio, lista… Como se unir com tanta disputa? Sempre vai ter um monte de gente que gosta e desgosta da minha comida: isso é natural. O que não podemos é virar um bando de imbecis achando que somos cantores de rock ou time de futebol pra ter torcida organizada.

Mas Roberta conquistou estrela Michelin, foi eleita melhor chef mulher da América Latina (prêmio inacreditavelmente sexista, aliás). Querendo ou não, até ontem fazia parte deste universo. E foi exatamente por isso que suas críticas em relação a alta gastronomia, repetidas em duas entrevistas recentes, ressoaram tanto a ponto de fazer o chef Felipe Bronze escrever um artigo num blog do jornal O Globo, posicionando-se. 

“Achei profundamente desrespeitosa a reação de alguns cozinheiros com a minha saída da alta gastronomia. Foi uma decisão absolutamente pessoal. Nunca me referi a ninguém em particular, apenas expressei a minha opinião sobre o formato”, diz a chef. “Me preocupei, sim, quando vi que em determinado momento havíamos nos transformado numa manada que repetia formas, técnicas. Quando a mesmice chegou no conteúdo, dei um basta. Me chocou, por exemplo, ouvir um cozinheiro dizer que ‘taca tudo no sous vide’. Eu realmente acho que o sous vide emporcalhou a cozinha do mundo. Agora, gente inteligente pode usar. Eu não uso porque gosto de raspa de panela, de torrado. O Rodrigo Oliveira, por exemplo, usa com inteligência esse processo seco de laboratório no preparo da sua carne de sol e consegue um ótimo resultado.”

O atual mantra de Roberta é leveza. Leveza em não precisar dar satisfação, em ir atrás do que crê. Em não se sentir obrigada a seguir um modelo tão idealizado quanto incompreendido. “No começo do RS, um cliente quis me bater porque não podia escolher o prato que comeria (a casa só trabalhava com menu degustação, que mudava todas as noites). Bater, literalmente, de funcionário se enfiar na frente pra eu não tomar tapa na cara. Quando coloquei vinho nacional na carta, há onze anos, as pessoas achavam que tinha enlouquecido. Não saía. Abríamos garrafas e dávamos para os clientes provarem – e a compreensão do poema que é um Era dos Ventos, por exemplo, veio primeiro dos estrangeiros. Não foi fácil, mas naqueles dozes anos posso dizer que fiz tudo o que quis”.  

E para este novo trajeto, Roberta manteve consigo todo seu time de cozinha e salão (ela costuma dizer que é “meio mãe pata”). São eles que a acompanharão na nova casa, a ser inaugurada no Rio ainda neste ano. A cozinheira não dá muitos detalhes sobre o empreendimento, mas deixa entrever que será algo afetivo, meio casa de avó, meio comida de fazenda: “A Paola (Carosella) me indicou um artesão uruguaio que está fazendo o forno a lenha da nova cozinha”.

Mas, no final das contas, o que Roberta Sudbrack quer? “Quero fazer coisas que me conectem profundamente com o que penso ser a essência do cozinheiro: fazer feliz para ser feliz. E vou reaprender a cozinhar: fui chef de cozinha e quero me tornar cozinheira de forno e fogão.”

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