Almadraba: por dentro da milenar e sustentável técnica de pesca do atum vermelho, na Espanha

Barriga de atum de almadraba com Jerez: todo o sabor adocicado e rico da carne no La Azotea de La Mejorana, em Conil

A primeira vez que ouvi falar em almadraba foi há pouco tempo. Ano passado, para ser exata, quando lia o (excelente) livro do chef Dan Barber, O Terceiro Prato. Bastaram algumas páginas para que eu ficasse fascinada por essa técnica antiquíssima de pesca de atum, criada há cerca de 3 mil anos pelos fenícios e aprimorada pelos árabes, na costa de Cádiz, na Espanha. Jamais imaginaria que apenas dez meses depois eu estaria ali, num barco, observando-a de perto. Mas estava – e foi incrível.

Ventresca de atum vermelho em cama de algas do restaurante Paralelo 38, em Conil

Milenar, sustentável, artesanal, profundamente enraizada na estrutura da sociedade local – diversos povoados vivem dela há centenas de anos, passando ensinamentos de pai para filho, montando as redes por dois meses, pescando por outros dois meses e desmontando tudo no final de julho – a almadraba é um exemplo de como o homem pode e deve(ria) viver em harmonia com a natureza, mesmo retirando dela o que deseja. No caso, a valiosíssima carne do atun rojo, atum vermelho ou BlueFin (Thunnus Thynnus).

Mojama – curado de solomillo ou lomo de atum vermelho – e ovas curadas do ótimo Salicornia, em Cádiz

Um dos cortes do atum de almadraba mais apreciados pelos espanhóis, especialmente em preparos crus, é o Paladar. Localizada na parte superior da cabeça do peixe, tem sabor mega intenso, que mistura algo marítimo com a untuosidade da carne vermelha

É importantíssimo dizer que os atuns – todas as diversas espécies – estão caminhando para extinção pela culpa do apetite insaciável por sashimis, temakis, tartares e afins. Para atender a demanda crescente e cega, a pesca industrial, legal e pirata, retirou/retira quantidades assombrosas de peixes nas últimas três décadas, resultando numa grave diminuição da população marinha global, impactando também a da almadraba (que representa menos de DOIS POR CENTO da pesca de atum no planeta).

Poster com os principais cortes do atum de almadraba: nem a barbatana é desperdiçada (usa-se muito para sopas e caldos)

Para tentar reverter esse quadro, instalou-se na Espanha, há cerca de dez anos, uma política de cotas, que estabelece limite máximo de retirada de atum/ano (em 2016, foi de mil toneladas). É seriamente fiscalizada e as multas, no caso de infração, pesadas. Bateu a meta? Todos os atuns que permanecem nas redes são liberados e seguem seu rumo.
Restringir para não destruir.
Os resultados já são motivo de comemoração.

Rede final da pesca de almabrada, na qual os atuns são abatidos e içados do mar

A almadraba é composta por quilômetros de labirintos de redes presas do fundo do mar até a superfície, a cerca 900 metros da costa, com buracos grandes o bastante para que todos os peixes passem por eles, exceto atuns vermelhos com mais de 80 quilos – peso mínimo permitido para abate nas almadrabas. Eles entram na almadraba para fugir de seus predadores, as orcas, enquanto migram do Atlântico para o Mediterrâneo, através do Estreito de Gibraltar, em busca de águas mais quentes. Em final de abril, maio e começo de junho, meses do ano no qual é realizada, os peixes estão no auge de seu peso: acumularam gordura para enfrentar o inverno.

Fatias de Ventresca – uma das partes mais nobres, a barriga – do Atun Rojo Selvaje de Almadraba: olhando rápido, diz-se que é uma fatia de Wagyu

Nós, chegando a almabrada de Barbate, na costa de Cadiz, na Espanha

Como se vê, é pesca seletiva: nenhum peixe pequeno é capturado. Nenhuma outra espécie é capturada. Nas redes da almadraba – que formam corredores no mar, levando os peixes para imensas ‘piscinas’ nas quais esperam o abate – só ficam presos espécimes com peso acima de 80 quilos e idade média de 10 anos (o bluefin chega a atingir 200 quilos e viver 25 anos). A média de peso/peixe de captura na almadraba é de 150 quilos: os almadraberos preferem esperar o animal atingir o seu melhor. Para se ter uma base de comparação, a regulamentação internacional permite retirada de atuns com 30 kg e cerca de 4 anos, o começo de sua idade fértil.

Produção de mojama – curado de atum vermelho de almadraba – na fábrica da Gadira, em Barbate

Em contraponto, o cenário atual de pesca é esse:

“Ao longo dos últimos 60 anos, começamos a tirar peixes demais do mar, mais do que quadruplicando a pesca anual, de 19 milhões de toneladas, em 1950, para 87 milhões de toneladas, em 2005. Simplificando, estamos tirando peixes do oceano mais rápido do que eles conseguem se reproduzir. O resultado é que 85% dos estoques de peixe do mundo agora são considerados como plenamente explorados, superexplorados, esvaziados ou se recuperando de esvaziamento” (Dan Barber, em o Terceiro Prato).

Do atum de almadraba, nada MESMO se joga fora: utiliza-se até barbatanas e os intestinos (foto). Curados no sal, são usados em receitas de cozidos.

Voltando a almadraba: uma das cenas mais comentadas por quem já viu documentários ou fotos é a da matança. Nada bonita, mesmo. O mar é tingido de vermelho pelo espesso sangue dos atuns. A boa notícia é que depois de três milênios, a forma de abate mudou: desde o ano passado, as almadrabas de Cádiz não mais cortam ou batem na cabeça dos animais. Agora a morte é por tiro com cápsula de ar comprimido, direto no crânio do peixe, disparado por mergulhadores. Além de abater instantaneamente, esse método evita também a perda de sangue e que o atum se debata e ‘machuque’ a carne, marcando o lugar com hematomas e derrubando o preço de venda que, na Espanha, pode atingir 3 mil euros pelo bicho inteiro (e quando chegam no Japão, são revendidos a mais de 200 mil euros…).

Tarantello com crosta de caramelo e humus do La Azotea de La Mejorana, em Conil

O processamento é imediato: ou é congelado no barco e segue para o comprador internacional ou vai para uma das poucas empresas licenciadas a lidar com o atum de almadraba – Gadira e Petaca Chico são duas delas. Nas fábricas são feitos os vários cortes, salmouras e toda espécie de preparo com as partes do animal, como carnes da cabeça, barbatanas, ovas e intestinos. A razão de haver poucas empresas nesse setor? Para evitar ‘falsificação’ de atum de almadraba: se não vier das licenciadas, é fake.

Salga e prensa das ovas de atum de almadraba na fábrica da Gadira

Ovas de atum vermelho sendo curadas na fábrica da Gadira, em Barbate

Mais da metade da produção das almadrabas de Barbate, Zahara de los Atunes, Conil de la Frontera e Tarifa vai para o Japão, o maior comprador, e o restante fica na Espanha. Por conta do domínio da técnica de supercongelamento, a temperaturas que alcançam -60 graus, é possível encontrar atum rojo selvaje de almadraba durante todo o ano nos bares e restaurantes da costa de Cádiz. A cidade de Conil, inclusive, faz a Rota Gastronômica do Atum. Em sua XXI edição, reúne dezenas de bares e restaurantes que disputam pela melhor receita a base da iguaria.

Praia urbana de Cádis: além de se comer maravilhosamente bem, a Andaluzia também é linda

Se o sabor faz jus à fama? Puts, como faz… Chega a ser lindo como cada corte do atum tem sabor distinto, indo do sutil e adocicado ao pujante, concentrado. Nas cidades ao redor de Cádiz – Barbate, Conil, Vejer de La Frontera- é possível comer ótimas tapas com atum de almadraba por valores entre 15 e 36 euros.

Praia perto do Farol de Trafalgar, em Caños de Meca, Andaluzia

Uma viagem gastronômica sensacional, que une prazer gustativo, história, respeito ao planeta e sustentabilidade. Comer bem e aprender: duas das minhas coisas favoritas, juntas, em dias com muito flamenco, Jerez e atun selvaje de almadraba.

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