Estômago, este saco de afetos

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Nosso estômago é um pequeno saco de afetos que só consegue guardar as lembranças que lhe foram essenciais. Numa breve e nostálgica entrevista com o meu, vejo que reteve passagens muito distantes, como o chá de erva-doce que carregava na mamadeira durante os primeiros tropeços de minhas pernas gorduchas, até os dedos untados escorregando pelas linguiças que enchia na cozinha da fazenda da família. 

No entanto, uma de suas memórias mais marcantes foi a de uma viagem que fiz com meu pai pela França. Era fim de tarde e chegáramos exaustos no hotel depois de horas de estrada. Prostrados e apáticos, fomos informados de que a cozinha havia fechado e que não havia, tampouco, restaurante aberto no pequeno burgo. Compadecido, o senhor introvertido da recepção prometeu improvisar uma refeição com o que achasse, e nos levou até a varanda para que sentássemos diante de um enorme muro de pedra do séc 14, coberto por heras, no jardim.

 Um sorriso acompanhava o impacto surdo de cada travessa que trazia e colocava sobre a mesa de madeira. Folhas verdes frescas, alguns legumes conhecidos e outros que o cansaço não me permitiu investigar, uns tomates gordos e suculentos, queijos, geleias, um bom pão de crosta estaladiça e uma jarra de vinho desconhecido foram o banquete. Desde então, já se passaram vinte anos e umas 5 mil refeições, e meu estômago teima em registrar aquela como uma das melhores da vida. Por quê?

Milhões de restaurateurs e chefs mundo afora procuram decifrar o enigma do que é construir uma memória feliz no estômago dos outros.

Como cliente, sinto o excesso de informações sobre tudo: ambientes, ingredientes, conceito e serviço, ao contrário de nos fazer mergulhar na experiência, está nos afastando dela. Sherazades de plantão contam mil e uma histórias sobre cada prato, explicando como cada erva foi plantada e colhida, de que material são feitos os utensílios, qual o processo de fabricação de cada vinho, o que seus olhos devem buscar no ambiente, o que o chef quis lhe dizer e o que seu estômago deve sentir. Um grande véu de informações se coloca entre você e a experiência, impedindo que se impacte com o que ela é, de fato.

 Ao mesmo tempo, a interação pelas redes sociais com todos aqueles que “não estão lá”, faz com que o momento se dissipe. O momento não existe mais e já somos esquecimento. Vemos depois nossas próprias fotos e as longas descrições que ouvimos, e tentamos fazer uma média entre o que realmente sentimos e o que nos disseram para sentir. O resultado desse excesso não é marcante. É dissonante e confuso.

As memórias puras do estômago, no entanto, não são feitas de notas, fotos e discursos e nem precisam necessariamente ser registradas. São seletivas, como devem ser, e apenas as que nos arrebatam, sobrevivem. Para que perdurem, precisamos ajustar nosso foco.

Como cliente, e apesar da profissão e da necessidade de registrar tudo, faço o exercício cada vez maior de viver o momento, de sentir o ambiente, de fechar os olhos e guardar os sabores. Como dona de restaurante, procuro pesquisar e entregar com carinho uma experiência realmente única, sem que nesse afã impeça aquele que nos escolhe, de desfrutar seu momento e suas companhias. Se conseguirmos isso, com sorte, garantiremos um pequeno quinhão em seu valioso saco de afetos, para a vida.

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