O colapso ambiental tem forma de bife

Vacas em criação intensiva nos EUA. No mundo, são abatidos 296 milhões de bovinos por ano

Se você soubesse que um dos alimentos mais presentes no seu dia-a-dia é o responsável pela contaminação de rios, lagos e mares com detritos químicos altamente tóxicos, cogitaria parar de comê-lo?

Se mostrassem a você estudos comprovando que a produção deste mesmo alimento é a principal razão para o desmatamento do Cerrado e da Amazônia, tiraria ele do seu prato?

Se provassem que para aquela comida chegar até sua mesa houvesse múltiplos processos de maus tratos, manipulações genéticas e aplicação excessiva de antibióticos e hormônios em animais, pensaria em, quem sabe, diminuir seu consumo?

Se a Organização Mundial da Saúde emitisse um alerta sobre a ligação da ingestão deste alimento com o aumento da possibilidade de desenvolvimento de determinados tipos de câncer, repensaria seu apreço por ele?

Pois se você come derivados de animais – carne, leite, queijo, ovos -, pode ir pensando nas respostas, porque as perguntas são para você.

Não há nada no cenário global atual que acarrete tão variados e imensos impactos ambientais quanto o crescente consumo de carne.

É sabido o papel que a queima de combustíveis fósseis e o sistema de transporte tem no aumento da emissão de gases do efeito estufa.

Discute-se cada vez mais o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas e seus efeitos no solo, água e na saúde humana.

São temas intrinsecamente polêmicos, decerto, mas impossíveis de serem evitados por governos, jornalistas, documentaristas. Apontar a ligação inequívoca da cadeia da produção de carne com as maiores mazelas ambientais da atualidade, porém, ainda é tabu. Ainda é visto por muitos como ‘exagero’. A humanidade está em negação – mas não conseguirá permanecer assim por muito mais tempo.  “O consumo de alimentos derivados de animais é uma das maiores e mais negativas forças a afetar a conservação dos ecossistemas terrestres e marinhos e sua biodiversidade. A produção de gado e de grãos para sua alimentação são as maiores causas de perda de habitat” – trecho do estudo Biodiversity conservation: The key is reducing meat consumption, realizado por cientistas da Florida International University e do Department of Forest Ecosystems and Society da Oregon State University.

Para tratar deste assunto de maneira a facilitar a compreensão, esta reportagem é dividida em blocos de itens primordiais ligados ao tema. Os dados expostos foram retirados de recentes estudos científicos (sempre haverá um link de direcionamento) e entrevistas com especialistas. São eles:

  • Cynthia Schuck-Paim, PHD pela Universidade de Oxford (Reino Unido) em Biologia Evolutiva, Economia Experimental e Etologia Cognitiva; pós-doutorada em análise de dados nas áreas de ciências biológicas e biomédicas; pesquisadora em artigos publicados em dezenas de revistas internacionais; Sócia- Diretora da Origem Scientifica.
  • Carlos Afonso Nobre, climatologista doutorado em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology, ex-Secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação – MCTI (Fevereiro 2011-Fevereiro 2015), Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, membro do “High Level Scientific Advisory Panel on Global Sustainability” do Secretário Geral da ONU.
  • Dr. Luiz Fernando Sella, formado em Medicina pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com especializações no Wildwood Lifestyle Center & Hospital e no Institute of Lifestyle Medicine, da Universidade de Harvard; mestre em Saúde Pública pela Loma Linda University (EUA)
  • Alessandra Luglio, Nutricionista graduada pela Universidade de São Paulo; Diretora fundadora do Departamento de Nutrição e Sustentabilidade da ABRASFEV – Associação Brasileira de Saúde Funcional e Estilo de Vida; Diretora do Departamento de Saúde e Nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB)
ANIMAIS PARA CONSUMO HUMANO, INEFICIÊNCIA ENERGÉTICA E CONTAMINAÇÃO DA ÁGUA

A população do planeta, em 2017, passou dos sete bilhões de habitantes. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em 2015, abatemos cerca de 70 bilhões de animais terrestres e mais de 2 trilhões de animais aquáticos para consumo humano. Para alimentar estes animais, são usadas aproximadamente dez vezes mais calorias do que as contidas em sua carne. Ou seja: a conta não fecha.

“A produção de itens de origem animal, do ponto de vista energético, é extremamente ineficiente. As plantas convertem energia solar em energia química, comestível. Os animais precisam se alimentar dessas plantas para produzir a carne, os ovos, o leite, que servirão de alimento para a população humana. Só que a maior parte da energia ingerida por eles não é transformada em carne: 90% dela é usada para o animal sobreviver, manter a temperatura corpórea, etc. Sendo assim, eles consomem várias vezes mais energia do que produzem”, diz a cientista Cynthia Schuck-Paim.

De acordo com estudo realizado pelo Departamento de ciências geofísicas da Universidade de Chicago, o contraste entre alimentos de origem animal e vegetal em termos de eficiência energética é enorme: enquanto a soja tem uma taxa de eficiência (a razão entre calorias produzidas e calorias utilizadas) de 415, a da carne bovina é de 6,479. “Neste processo, o emprego de recursos naturais é imenso: uso extensivo de terra – seja para pastagem ou para produção de grãos para ração – e de água, tanto para irrigar os cultivos quanto água para os animais beberem e para o processo de abate”, continua.

O gasto de água seria, por si só, preocupante: o setor agropecuário é responsável por mais de 70% do consumo global (um terço disso se destina a irrigação dos cultivos para ração). O fator mais agravante, porém, é como essa água volta para a natureza: como pouquíssimos produtores de carne/leite fazem a gestão de resíduos, por ser um processo de alto investimento financeiro, os efluentes líquidos provenientes dos abatedouros tem forte carga de matéria orgânica (sangue, gordura, vísceras e restos de carcaças) e elevada concentração de nitrogênio, fósforo e produtos de limpeza. Esse líquido de descarte infiltra-se no solo, polui os lençóis freáticos, aquíferos e os cursos de água, desembocando em rios e, por consequência, nos mares. A questão é tão alarmante que o efeito do descarte líquido da agropecuária, somado ao uso intensivo de agrotóxicos, pesticidas e antibióticos, é a formação de mais de 115 zonas mortas oceânicas, sendo a maior delas a do Golfo do México, com 21 mil km2, segundo o National Oceanic and Atmospheric Administration.

Para se ter uma ideia do montante de dejetos:

DESMATAMENTO, EFEITO ESTUFA E DESERTIFICAÇÃO

Desmatamento em Santarém, no Pará (Foto: Karla Gachet/Geenpeace)

Para alimentar os trilhões de animais de corte que saciam nosso apetite, é necessário plantar o que eles irão comer. Atualmente, cerca de 30% das áreas do globo livres de gelo são usadas como pastagem (equivalente ao tamanho da África)  e um terço dos 3 bilhões de hectares de terras produtivas da Terra são utilizadas para plantação de grãos destinados a ração de porcos, galinhas, vacas, ovelhas, cabras, peixes. Utilizamos quase metade das áreas aráveis do mundo para pastagem ou produção de ração.  

Como o consumo de alimentos derivados de animais ainda está em crescimento, especialmente nos países emergentes como China e Brasil, a tendência é precisarmos de cada vez mais terra. A abertura de novas pastagens ou áreas de monocultura de grãos estão avançando, grandemente, nas florestas tropicais, especialmente na Amazônia.

“A pecuária responde por 65% dos desmatamentos na Amazônia”, diz o climatologista Carlos Afonso Nobre, que estuda há décadas o impacto das mudanças climáticas na região. “Este setor provoca um paradoxo impossível de resolver: se a produtividade da área é otimizada e a pecuária se torna mais rentável, traz mais capital e termina por aumentar o desmatamento. Se o manejo é primitivo, como é desde a implementação da pecuária na Amazônia, as pastagens aguentam, no máximo, 5 anos e depois são abandonadas”, explica.

Nobre continua: “Analisando dados dos estudos que publiquei, chegamos a conclusão que com o aquecimento global, somado a mudança climática, ao desmatamento e ao impacto do fogo, podemos perder até 60% da Amazônia ainda neste século. Perderíamos também 40% das 1,2 milhões de espécies (fauna e flora), das quais só conhecemos 70, 80 mil”.

O que se vê maciçamente na televisão, porém, é que o agronegócio é a riqueza maior do Brasil, responsável por parcela significativa do PIB e por nos salvar da pior crise econômica da história. A tv Globo recheia seus breaks comerciais com propagandas da série “Agro é Pop”, dizendo ao povo brasileiro que não só somos sustentáveis, como somos um exemplo pro mundo. Será? “Cálculos realizados pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacional (GIZ) apontaram que para cada R$ 1 milhão de receita gerada pela pecuária, acarreta-se R$  22 milhões de custos ambientais não contabilizados, principalmente em desmatamento e emissão de gases-estufa”, aponta Cynthia. “Quando se diz que a agroindústria salva a economia brasileira se está mostrando só uma parte da história: todos esses custos associados quem paga é a sociedade, seja em perda de capital natural, através de subsídios governamentais para essa indústria ou com o impacto gerado no sistema de saúde pública pelo consumo de seus produtos. O custo da agropecuária é muito maior do que a renda que ela gera, mas isso é invisível para a maioria das pessoas”, explica.

Exemplo da economia de Floresta em Pé é o açaí: as árvores são cultivadas em sistema agroflorestal. A produção do açaí na Amazônia já movimenta 2 bilhões de dólares/ano. Imagem retirada do Pinterest

Animais de corte, especialmente gado, jogam na atmosfera metano (resultante do processo de digestão de ruminantes e do manejo de esterco) e óxido nitroso (volatilizado de dejetos de criações e de fertilizantes usados no cultivo), gases que contribuem com o efeito estufa de maneira muito mais intensa – vinte e trinta vezes maior, respectivamente – do que o CO2, produzido principalmente pelo sistema de transporte. Em 2013, o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG-Brasil) publicou que o setor agropecuário brasileiro contribuiu com cerca de 30% das emissões do país (84% deles, provenientes da pecuária). Se essa conta levasse em consideração o desmatamento para expansão agrícola, o uso de combustíveis fósseis na agricultura e o tratamento de efluentes, a agropecuária brasileira responderia por 60% do total.

“O agronegócio dos países tropicais é expansionista. O setor ainda está fazendo grandes mudanças no padrão de uso da terra. Os documentos da EMBRAPA e do Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável dizem que até 2030 o Brasil produzirá 35% mais carne em área 25% menor, convertendo parte dela para plantação de grãos e restauração florestal. Será? No plano, não dá pra criticar. Mas já estamos a 13 anos do prazo e isso não está acontecendo. Pelo contrário: o desmatamento aumentou, tanto na Amazônia quanto no Cerrado. Então só acreditarei no discurso quando a ciência me revelar que está, de fato, acontecendo”, fala Nobre.

E há, sim, outro modelo de crescimento econômico na Amazônia que não inclua devasta-la: é a economia da floresta em pé. “Hoje, a Amazônia exporta matéria muito primária: minério de ferro, madeira e carne. A economia da floresta em pé, baseada em produtos de alto valor potencial, é muito poderosa: já há identificado cerca de 1000 produtos naturais, sendo 300 deles profundamente estudados em termos de adensamento agroflorestal”, fala Nobre. “Açaí é um exemplo. Movimenta atualmente quase o mesmo montante da madeira, que é quase toda ilegal, cerca de 2 bilhões de dólares/ano (carne, 5 bi/ano). Em segundo vem a castanha do pará. Mas há uma série de outros: guaraná, andiroba, copaíba, pau-rosa… A Natura é uma empresa que já trabalha com esse potencial. Descobriu novo uso para a ucuuba (semente de árvore amazônica ameaçada de extinção, com alta concentração de óleo, muito usado na indústria de cosméticos como hidratante) e manteve 1500 famílias na ilha de Cotijuba, produzindo em sistema agroflorestal. A renda da população aumentou três vezes – e com isso não tiram a madeira, coisa que faziam apenas a cada 25 anos”, diz. “Não existe nada que impeça uma política pública que incentive a economia de floresta em pé. No papel, há subsídios governamentais para isso, mas nunca são implementados”, fala Nobre.

ÉTICA: A QUESTÃO RELEGADA AO SILÊNCIO

Criação de porcos-padrão: assim vivem os animais que comemos

“O que torna a sina dos animais de fazenda domesticados particularmente difícil não é exatamente o modo como eles morrem, mas, acima de tudo, o modo como eles vivem. Infelizmente, os humanos podem causar grande sofrimento aos animais de fazenda de várias maneiras, mesmo quando asseguram sua sobrevivência e sua reprodução. A raiz do problema é que os animais domesticados herdaram de seus antepassados selvagens muitas necessidades físicas, emocionais e sociais que seriam supérfluas na fazenda dos humanos. Os agricultores, rotineiramente, ignoram essas necessidades sem sofrer por isso nenhuma punição no âmbito econômico. Eles prendem os animais em gaiolas minúsculas, mutilam seus chifres, caudas e bicos, separam mães de crias e seletivamente criam monstruosidades. Os animais sofrem imensamente, embora continuem a viver e a se multiplicar”.

As palavras precisas sobre a pecuária moderna são de Yuval Noah Harari, em seu livro Homo Deus, Uma Breve História do Amanhã. Harari, PHD em história pela Universidade de Oxford, dedica várias páginas da sua obra ao tema amplamente enfiado debaixo do tapete da sociedade: o modo com que tratamos os animais que nos servem de alimento.

Abate: imagens que não queremos associar com o hambúrguer que comemos

Esqueça as imagens idílicas das embalagens: a vaquinha leiteira não pasta feliz no campo, o porquinho não vive solto, a galinha não sai ciscando pelo quintal.

A realidade da vaca é tomar hormônio por boa parte do ano, para continuar lactando, enquanto é separada de seu bezerro em poucas semanas (o final dele, se for macho, é virar vitelo; se for fêmea é ser emprenhada o quanto antes para produzir leite) e ordenhada várias vezes por dia por máquinas de sucção.

A realidade do porco é viver em baias de cimento tão pequenas que, por vezes, a porca não consegue nem ficar de pé para amamentar.

A realidade das galinhas poedeiras é passar a existência numa gaiola menor que uma folha de papel, ter o bico cortado para não machucar as outras devido ao estresse, ingerir antibiótico na ração para não morrer ‘antes da hora’.

“Mesmo que tivessem boas condições de vida, a genética deles está transformada de tal forma que são animais inviáveis do ponto de vista de bem estar. É uma existência sofrida”, diz Cynthia.

99% dos ovos que à venda são provenientes do sistema de bateria, no qual as galinhas vivem amontoadas, sem espaço nem para abrir as asas, por cerca de dois anos

Vida miserável em ambientes superpopulosos, excesso de de antibióticos e promotores de crescimento (em alguns casos, hormônios), alimentação a base de grãos cultivados com grande carga de pesticida: esse cenário não poderia produzir, e não produz, animais saudáveis. Nem para eles, nem para quem os consome.

“Está mais do que comprovada a relação do excesso de consumo de proteína animal ao aparecimento de doenças crônicas como as cardiovasculares, tipos de câncer, diabetes e obesidade. No universo científico há consenso quanto a importância de se ingerir muito mais vegetais do que animais: as pesquisas são abundantes nesse sentido. Porém há um descompasso entre o saber científico e a prática profissional” pontua o médico Luiz Fernando Sella. “A medicina ser tão desconectada da nutrição é um absurdo”.

Exemplo do efeito cascata gerado pelo método industrial de produção de animais de corte está na gordura da carne, aquela parte que muita gente saliva de prazer só de pensar. Melhor pensar. Duas vezes. “Os pesticidas organoclorados se acumulam na gordura do animal. Quando ingerimos essa gordura, ingerimos também o resíduo do pesticida”, diz Dr. Sella. Os organofosforados e carbamatos são compostos químicos amplamente utilizados na agropecuária como inseticidas, no controle de pragas em plantações e de parasitas em animais.

Transporte de leitões: amontoados, tratados como carga

Outro fator de alerta decorrente do sistema intensivo de criação é a crescente resistência a antibióticos – por parte dos humanos e dos animais.  A maioria dos animais criados para consumo (principalmente galinha, porco e salmão) recebe rotineiramente doses de antibióticos e outros compostos com atividade antibacteriana (como quimioterápicos) para garantir sua sobrevivência e rápido ganho de peso. Alguns desses medicamentos são os mesmos recomendados a humanos. A administração excessiva faz com que as bactérias, em vez de morrerem, se adaptem ao ‘veneno’, evoluindo para bactérias superresistentes.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, se ações urgentes não forem tomadas, entraremos em breve numa era ‘pós-antibiótico’, na qual uma simples infecção poderá ser fatal.

O PÂNICO DA FALTA DE PROTEÍNAS

As duas questões mais frequentes diante da constatação que alimentos derivados de animais não são assim tão benéficos nem pra saúde humana, tampouco para o meio ambiente é “Isso é besteira: somos carnívoros por natureza!” e “Então de onde vou tirar minhas proteínas?!”. Vamos por partes.

Parte 1: “Isso é besteira: somos carnívoros por natureza!”

“Ah, eu faço dieta paleo por que é a dieta ‘natural’ do ser humano”. Não, não é. O homem evoluiu como coletor-caçador, conseguindo a maior parte dos seus nutrientes de plantas (legumes, verduras, tubérculos, grãos e frutas). A caça acontecia ocasionalmente – eles não tinham um estoque de pernil de mamute no freezer, nem entrecôte de bisão na geladeira da caverna. Não se consumia carne, leite e ovos na quantidade e quantidade que consideramos normal na atualidade. Portanto, sim, somos onívoros mas, evolutivamente, a dieta humana sempre foi mais vegetal do que animal.

A cientista e bióloga Cynthia Paim esclarece: “Temos hoje uma situação muito distinta daquela em que nossos antepassados viveram. No passado, as populações humanas viviam em ambientes onde a diversidade e disponibilidade de alimentos era muito limitada. Para estas populações, expostas à escassez alimentar e deficiências nutricionais, o  consumo esporádico de um determinado alimento (como a carne de outros animais) certamente pode ter sido benéfica. Atualmente, no entanto, a maioria das sociedades urbanas tem acesso a uma grande diversidade de alimentos (legumes, cereais, verduras, frutas, sementes e outros cultivos) que permitem a adoção de uma dieta balanceada e completa, rica em proteínas, ferro, cálcio, zinco, vitaminas e outros nutrientes, sem a necessidade de consumo de alimentos de origem animal”.

E no tocante a segurança alimentar: ela é maior hoje do que no passado? Em geral, sim, mas o manejo dos bichos e suas condições de vida inadequados acarretam outras complicações. Segundo o estudo Mapping of Poverty and Likely Zoonoses Hotspots, do International Livestock Research Institute, em nações em desenvolvimento, treze zoonoses provenientes de porcos, galinhas e bois estão associadas a cerca de 2,4 bilhões de casos de infecção humana e mais de dois milhões de mortes todos os anos.

Parte 2: “De onde vou tirar minhas proteínas?!”

“Não existe nenhum nutriente sintetizado pelos animais que seja essencial para os humanos: os animais são meros acumuladores. E de onde eles tiram seus nutrientes? Da comida, que é vegetal. Então podemos pular a etapa animal e ir direto na fonte. Todos os aminoácidos essenciais – aqueles que humanos não produzem – a vaca, o porco, a galinha, também não produzem. Eles são resultados da fotossíntese, do oxigênio do ar e do carbono do solo”, explica a nutricionista Alessandra Luglio, especialista em longevidade. “O ser humano está comendo muito mais proteína do que precisa. Quando se tira ou diminui a carne da dieta, não se exclui a proteína, simplesmente deixa-se de consumir o excesso”.

Impossible Burger: a startup de carne vegetal teve investimento milionário de Bill Gates e já vende, nos EUA, seus hambúrgueres que até ‘sangram’

Então quer dizer que não é só carboidrato e gordura que, em demasia, fazem mal? “A ingestão excessiva de proteínas leva a estresse metabólico e acidose metabólica. Toda acidose gera inflamação e toda inflamação, doença crônica”, diz Alessandra.

“O excesso de proteína se acumula no fígado. O principal subproduto de sua metabolização é a amônia. A amônia é transformada em ureia, que gera acidificação do sangue. No meio ácido, as enzimas não funcionam. O corpo, para equilibrar a acidez, retira cálcio dos ossos, que libera bicarbonato de cálcio, o que leva a problemas ósseos”, explica a nutricionista.

Interessante também atentar para a alegada falta de ferro numa alimentação com pouca ou nenhuma proteína animal. Alessandra explica que “o excesso de ferro heme – presente no músculo, na carne dos animais – é um ferro extremamente oxidativo e não é o mesmo presente em folhas escuras, sementes e algumas leguminosas”.

“De onde vou tirar minhas proteínas?!”. Da chia, ervilha, feijão, favas, soja (edamame, tofu, leite de soja, missô etc), grão de bico, gergelim, linhaça, semente de girassol, semente de abóbora, quinoa, nozes, amêndoa, castanha de caju, spirulina, arroz integral, cevada, trigo, aveia, amaranto, quinoa, brócolis, escarola, agrião, espinafre, couve, abacate, caju, avelã, macadâmia… Ou seja: em verduras de folhas escuras, cereais integrais, leguminosas e oleaginosas.

“A American Dietetic Association afirma que a dieta vegetariana é adequada para todos os ciclos da vida, desde o bebê até o idoso. Se for planejada, variada, é perfeitamente saudável”, diz Dr. Sella.

Diversos estudos científicos vem sendo feitos no sentido de descobrir como alimentar a crescente população mundial diminuindo a pegada ambiental causada pelos animais. Um dos mais recentes, que trabalha com um cenário hipotético, foi realizado em conjunto pela Loma Linda  University,  pelo Radcliffe Institute for Advanced Study (Harvard) e pelo Department of Forest Ecosystems and Society, da Oregon State University e intitulado de Substituting beans for beef as a contribution toward US climate change targets (Substituindo carne por leguminosas e contribuição dos EUA para cumprimento das metas de mudança climática). Os “resultados demonstram que substituir carne por leguminosas poderia aumentar de 46% para 74% as reduções de gases de efeito estufa necessárias para atingir a meta americana até 2020. Esta mudança também livraria 692,918 km2 de área voltada a plantação de alimentos para animais”.

Não são somente cientistas que estão empenhados em resolver a equação ‘gosto humano pela carne X menos impacto ambiental X ética. Alguns bilionários e empresas, também. Bill Gates (fundador da Microsoft), Richard Branson (dono da Virgin) e a Cargill investiram perto de 22 milhões de dólares na Memphis Meats, startup que produz em laboratório carnes de vaca, frango e pato, através de células animais. Bill Gates também é investidor da Impossibile Foods, empresa que já comercializa, em dezenas de restaurantes americanos de primeiro time (como o Momofuku Nishi, do chef David Chang, em New York), seu hambúrguer 100% com sabor e  textura de carne – que até sangra, devido ao uso de uma espécie  modificada de soja. Veja AQUI Chang provando o Impossible burger.

E DEPOIS DE TUDO ISSO…

Dados e evidência para a diminuição do consumo de derivados animais não faltam. Contudo, a grande maioria das pessoas ainda reluta em aceitar isso. Curioso, não?  Cientistas escoceses também acharam, e por isso foram pesquisas as razões de tanta reticência. O estudo Eating like there’s no tomorrow: Public awareness of the environmental impact of food and reluctance to eat less meat as part of a sustainable diet (Comendo como se não houvesse amanhã: conhecimento público do impacto ambiental da comida e a relutância em comer menos carne como parte de uma dieta sustentável), realizado em 2015 pela Public Health Nutrition Research Group da University of Aberdeen, no Reino Unido, entrevistou mais de 1500 pessoas na Escócia.

As considerações finais dizem tudo: “Três temas dominantes relacionados ao consumo da carne emergiram da análise; 1. Falta de consciência da associação entre consumo de carne e mudanças climáticas; 2. Percepção do consumo pessoal da carne influenciando minimamente o contexto global de mudança climática; 3. Resistência a ideia de reduzir o consumo pessoal da carne”.

Pois ainda achamos que nada tem a ver conosco, individualmente. Mas os fatos estão aí para nos desmentir. Por completo.

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